Isto é Dinheiro – Louis Vuitton sem Carcelle

Na cidadezinha de Asnières-sur-Seine, a cerca de oito quilômetros de Paris, uma casa em estilo art nouveau abriga o espírito secular da Louis Vuitton. Não só porque lá viveram o próprio Louis com a esposa, filhos, netos e bisnetos, mas também porque nos fundos fica o ateliê em que são feitas as bolsas mais preciosas da grife, sob medida. O responsável pelo departamento de pedidos especiais é Patrick Vuitton, da quarta geração da família, que cresceu entre aquelas roseiras. Quem nos recepciona na Maison Vuitton é Margarita Zimmermann, uma argentina bonachona que cuida das instalações há 17 anos.

Ela conta os bastidores da história da dinastia dos maleiros, como o fato de Louis ficar nos fundos da casa fazendo caixas e baús enquanto a esposa cuidava da loja, que funcionava onde hoje fica o sofá de capitonê em couro marrom em que nos sentamos. Entre crônicas familiares e alguns croissants, ela fala sobre a saída de Yves Carcelle. Esse francês, de 64 anos, passou 22 anos no cargo de CEO da empresa e deve desocupar o posto a partir de 2013. Embora não carregue o sangue Vuitton, Carcelle é responsável pelas principais mudanças por que passou a grife e a transformou de uma produtora local de bolsas em um colosso da moda mundial.

Sua saída causa frisson no mundo dos negócios de alto luxo e, claro, traz ansiedade a muitos dos 25 mil empregados e seis mil artesãos da marca em todo o mundo. Margarita já está com saudades do chefe, de quem guarda uma lição importante: ?Uma vez, aqui nesta sala, ele derrubou uma xícara de café e fez questão de limpar o estrago pessoalmente. E me disse: ?Quando fizer algo estúpido, você mesma deve consertar??, recorda. Durante sua gestão na Louis Vuitton, Carcelle acertou mais do que errou. A marca passou de 125 lojas para 456. E, nos últimos cinco anos, a produção dobrou. Só no ano passado, atingiu faturamento correspondente a 37% do total do conglomerado de luxo LVMH Moët Hennessy ? Louis Vuitton, do qual faz parte.
Para se ter ideia, o LVMH faturou ? 23,65 bilhões em 2011. Mais da metade do lucro de ? 5,26 bilhões da holding de Bernard Arnault também viria da Louis Vuitton, segundo a revista The Economist. E olha que o grupo reúne mais de 60 marcas, entre elas Christian Dior, Céline, Veuve Clicquot e Tag Heuer. Entre suas decisões acertadas, está a contratação do estilista Marc Jacobs. Mas estará seu sucessor à altura do desafio? O próprio Carcelle recebeu a DINHEIRO para falar sobre esse momento crucial para ele e a grife. ?Estou a 150 km/h, treinando meu sucessor, que é um excelente executivo. Estou aqui há 22 anos, mas é hora de sair?, diz. Em sua cadeira irá sentar-se Jordi Constans, ex-diretor-administrativo da gigante de iogurtes Danone, onde ficou por 13 anos.
Ontem e hoje: À esquerda, a casa em que moraram quatro gerações da família Vuitton e à direita, a loja mais icônica, nos Champs Elysées, em Paris. Imagem: Istoé Dinheiro

Ontem e hoje: À esquerda, a casa em que moraram quatro gerações da família Vuitton e à direita,
a loja mais icônica, nos Champs Elysées, em Paris. Imagem: Istoé Dinheiro

Mas como é que um executivo do insosso setor de derivados de leite pode substituir um ícone do luxo? É uma pergunta que não quer calar, pois afeta diretamente a imagem da companhia que tem a marca de luxo mais valiosa do mundo. ?A Louis Vuitton é muito amada no mundo todo e isso é resultado da criatividade na administração, dos constantes investimentos e de um bom artesanato?, define Elisabeth Ponsolle des Portes, diretora do Comitê Colbert, instituição francesa que reúne 75 marcas de luxo. Segundo estudo da agência britânica de consultoria e pesquisas em branding e mídia Millward Brown Optimor, divulgado em maio deste ano, a casa francesa está avaliada em US$ 25,9 bilhões.
Imagem: Istoé Dinheiro

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Em segundo lugar, vem a Hermès (US$ 19,1 bilhões), seguida da Rolex (US$ 7,2 bilhões). Essa capacidade de despertar desejo ? entre celebridades, suas bolsas são quase um uniforme ? se deve, em grande parte, a uma gestão eficaz. ?Yves Carcelle foi o responsável por fazer da LV a máquina poderosa que ela representa no mercado. O legado dele é inegável. Ele inspirou muitos empresários?, resume Carlos Ferreirinha, diretor da MCF Consultoria, que dirigiu a marca no Brasil entre 1995 e 2001. ?Ele sempre conciliou visão estratégica, segurança nas decisões, ousadia e exigência, mas, tinha ao mesmo tempo, uma cordialidade e uma gentileza ímpares no trato com as pessoas?, completa.
Conhecido pelo jeito simpático ? oposto ao do seu chefe, o competitivo e temido Bernard Arnault ? e por uma administração quase paternal, Carcelle deixou suas marcas. Seu estilo de gestão horizontal diminui os intermediários na pirâmide hierárquica e o torna mais próximo de seus funcionários, o que fica evidente na história da xícara de café contada por Margarita. ?No mercado de alto padrão, em que as vendas se dão de forma emocional, isso é vital. E ele começou a transmitir essa postura aos seus funcionários há mais de 20 anos, o que mostra que sempre esteve à frente do seu tempo?, explica Gabriela Otto, professora do curso de marketing de luxo da ESPM.
Ao mesmo tempo, ele verticalizou os negócios da empresa, que controla de perto os 14 ateliês e todas as lojas da marca no mundo. Não existem franquias e nem revendedores. O grau de perfeição exigido é alto e os detalhes são fundamentais no mercado do luxo, assim como o DNA da marca, que se define como o bom e velho artesanato francês. O prestígio é reforçado em várias frentes: a grife nunca faz liquidações, vende muito pouco online (apenas para oito países e somente parte dos produtos), e realiza frequentes parcerias com artistas contemporâneos, como Richard Prince e Takashi Murakami. A mais recente empreitada nesse sentido foi a recente inauguração de uma loja de alta joalheria na parisiense Place Vendôme, o mais nobre endereço dos joalheiros franceses.
Entramos nesse nicho meio por acaso, porque o Marc Jacobs queria relançar o ?charm bracelet?. A ideia teve tanto sucesso que pensamos na butique?, diz o CEO. E, ainda este ano, será lançada uma fragrância da marca. O perfumista-responsável será Jacques Cavallier-Belletrud, do laboratório Firmenich, que já criou sucessos como L?eau d?Issey (Issey Miyake), Jean Paul Gaultier Classic e Dior Addict. E esse deve ser um dos últimos passos de Yves Carcelle no posto de CEO da Louis Vuitton. Formado em matemática, com MBA em negócios pela renomada faculdade Insead, ele começou sua carreira na indústria de produtos de limpeza, na francesa Spontex, em 1970. Passou pela grife de roupas Absorba e foi presidente da empresa de roupas de cama e banho Descamps.
Ele chegou à Louis Vuitton em 1989 como diretor de estratégias e se tornou presidente do Conselho e CEO da companhia em 1990. Hoje, ainda é membro do Comitê Executivo da LVMH e membro do Conselho de várias companhias de moda da holding, incluindo Berluti, Marc Jacobs, Loewe e Fendi. Seu destino já está sendo especulado: deve assumir a Louis Vuitton Foundation, um museu de vidro encravado em meio ao Bois de Boulogne. O desafio de superá-lo nesse cobiçado cargo ? que só foi ocupado por seis pessoas desde 1854, quando Louis começou a fazer baús ? está nas mãos do espanhol Jordi Constans, de 47 anos. Ele chega com a missão de manter o crescimento anual de dois dígitos. A escolha de Constans causou estranhamento no mercado de luxo.
Formado em economia pela Universitat de Barcelona, passou pelo departamento de marketing da Vileda, multinacional portuguesa do ramo de limpeza (início semelhante ao de Carcelle, por sinal) e chegou à Danone espanhola em 1998, como diretor de marketing. Traçou uma carreira ascendente dentro da companhia até que se tornou diretor-administrativo em janeiro de 2011. Sua larga experiência na gestão de uma marca global teria pesado a seu favor. Mas não é só isso. ?Ao trocar seu CEO, a LV deu um sinal de que vai mudar. O estilo CEO paizão talvez não seja tão combativo como é necessário hoje em dia. Eu deduziria que eles queiram enxugar custos e variar os produtos?, diz Villela da Matta, presidente da Sociedade Brasileira de Coaching.
?E nisso, a escolha de um executivo vindo da Danone se justifica, visto que ele está habituado a administrar mais de 200 produtos de linha e a lançar muitas novidades por ano, para não ser engolido pela concorrência?, completa. No Brasil, a grife também se movimenta com abertura de novas lojas e uma global store de mil metros quadrados no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo. ?Até o fim deste ano vamos inaugurar a maior loja da América Latina no Brasil, que trará todo nosso mix de produtos?, diz Yves Carcelle. Com ou sem ele, o País entrou na rota do mercado de luxo para valer.
O talento criativo
Até 16 de setembro fica em cartaz no Musée des Arts Décoratifs de Paris uma mostra que traça um paralelo entre o trabalho de Marc Jacobs e a Louis Vuitton nos últimos 15 anos. O americano, diretor de criação da grife desde 1997, foi o responsável por criar uma linguagem de moda ? e uma linha prêt-à-porter para a grife. ?Jacobs participou ativamente da montagem da mostra?, disse à DINHEIRO Pamela Golbin, curadora-chefe do museu. A exposição mostra a importância de Louis Vuitton ao criar os baús que transportavam as roupas das damas da alta sociedade na metade do século XIX. Quase 200 anos depois, Jacobs é um dos mais prestigiados do universo da moda.

Publicado em ISTOÉ Dinheiro